sábado, 11 de agosto de 2012

Os sobreviventes

Chegou, enfim, extraviado o primeiro envio, mas não há amizade que não vença o desalinho postal. Esperava-o, ansioso. Li-o quase na íntegra esta noite. São os Retratos Antigos de Elisa Lispector. Como é possível transmutar a realidade morta de um álbum de fotografias numa quase ficção, como se a flagrância de o desfolhar restituísse alma e vida àqueles idos? Eis, como o assinala a apresentadora da obra, Nádia Gotlib, a natureza deste escrito «teatralização desse espectáculo do "ver" e do "rememorar"».
Por ali se conhece a história de uma família ucraniana exilada no Brasil. História que não conheceríamos pelos escritos de Clarice, omissos em muitas facetas, uma delas a condição judia da família, pouco expressiva quanto à sua condição de emigrantes. História que já se reconstituía por aquele que foi o segundo romance de Elisa intitulado No Exílio.
Que me seja permitido de todas essas vidas convocar a de seu pai, Pinkas [Pedro] Lispector. Vida patética, devotada ao culto do dever, enclausurada pela devoção e pela contenção da dignidade. Dado. Há vidas assim, sacrificiais.
História de perseguição, sujeito aos progrons, de luta pelo amanhã, emigrados para longe de uma Pátria que não lhes sobreviveu, de modéstia e privação, história de religiosidade e empenhamento pela construção do Lar Nacional. História condenada a não ter história. A Lei, em que acreditava, quis que assim fosse. Consciente dos dotes literários da filha, não inferiores - afirmo - aos de Clarice, sumamente menos divulgados, ouviu-se-lhe, após um profundo e como se hesitante silêncio «vou-lhe sugerir um tema. Escreva sobre um homem que se perdeu». A sua biografia, afinal. Morreu aos cinquenta e cinco anos, após o primeiro tempo em que, enfim, gozou umas férias que já nem seriam reparadoras.
Elisa Lispector deixou-nos, sozinha, sem companhia nem descendentes. Sua irmã Tânia guardou o espólio de que saiu este livro. Ele é a história do seu presente contada para o futuro num tempo passado.
Ilustro este escrito com um quadro de Lasar Segall, pintor que diz em tela o que se colhe do que Elisa nos comunicou pelas letras. Tudo com um abraço de gratidão a Ernani Catroli, amigo, que me fez chegar o livro, sabendo do meu desejo por ele.