domingo, 11 de dezembro de 2011

Além da Fronteira, o exílio

Acabei ontem a leitura de um pequeno grande livro chamado "Além da Fronteira". É o livro de estreia de Elisa [de origem Leia] Lispector, cuja extraordinária qualidade literária ficou ofuscada pela glória de sua irmã Clarice. Livros são hoje difíceis de encontrar, salvo no "sebo", o que corresponde aos nossos alfarrabistas. Mas que a amizade do Ernane Catroli reuniu para que eu pudesse ler. Livros de que pouquíssimos falam, pelo paradoxo profundo mas sem fama de quem os escreveu.
"Além da Fronteira", editado em 1945 por José Olympio, já pelo título se pressente é um livro construído sobre a memória da sua condição de emigrante ucraniana, vinda do lugar das privações, miúda ainda, a família em demanda da subsistência. 
Mas pressente-se nele já a opressão do exílio nesse Brasil, terra de futuro [para retomar o que foi o título de um controverso livro de Stefan Zweig, que tantos dissabores lhe causou e que no Brasil encontrou, afinal, a terra do seu suicídio] e «exílio» é a palavra que surge, quase a findar a obra, quando Sérgio, personagem central da narrativa, inicia a sua viagem final e sente na boca «a amarga sensação de exílio». E "Exílio" é título do seu livro seguinte, já de cunho mais intensamente auto-biográfico. E é nomenclatura no contexto da escrita de de Albert Camus, e título também do seu magnífico "O Exílio e o Reino", cuja escrita me ocorreu tanta vez ao ler a escrita desta discreta porque esquecida autora.
O livro é um excerto da vida de Sérgio, cruzado com excertos da vida de todos os outros, incidentais, precários, como é a vida, vista em permanente «extravasamento da perplexidade», escrita nómada por quem se pressente revista constantemente na pergunta «por que você não volta para a sua terra, se não consegue deitar raízes por aqui?».
Traçado em breves capítulos, há no desenrolar da narrativa um crescendo que, imperceptível, se apossa do leitor e torna a leitura difícil, pois em cada página, por vezes em cada parágrafo, se adensam os sentimentos como um corpo que se encharcasse por uma chuvada fria e dolorosa. Por isso levei semanas a ler, interpoladamente, estas 102 páginas, impressas em oitavo.
A grandiosidade surge no quase final, Sérgio a apartar-se do navio, a que já não voltará mais, o navio da viagem esperançosa e a ficar-se, só ante os homens mas presente, enfim, ante o ventre matricial da Terra, recebido e a entregar-se. São duas páginas em que o enraizamento se vai dando pelo entorpecimento primeiro do conhecimento, a perda sucessiva da sensação, a assimilação, enfim, do corpo e da mente «a essa espécie de paz interior e profunda», até que, deitado, os olhos visando os céus, os braços em cruz, «o seu dorso era o dorso da terra, e o espírito bom da terra o havia penetrado até ao fim», um fim que é o surgir de uma «vida com um sentido próprio, sem noção de tempo, local ou circunstâncias», porque «integrando-se numa ordem que o conciliava com a vida, com os homens, com Deus».
Como dizer-se que é a sua morte quando é o momento apenas da sua vida eterna, o ciclo do que existe a renovar-se, como a de Paulo no sanatório, e a sua noite, noite simbólica de inferno e desolação, «a noite, ora transformada numa nau fantasmagórica, parece oscilar no tempo (...)» em que «o navio do tempo parece avançar e retroceder entre o presente e o passado, até confundir tudo numa alucinação de pesadelo».
Sempre o navio e sua viagem, como o navio dos mortos, rumo de emigrados, «gente amontoada sobre gente, e o odor de carne, de suor, de humanidade».
«O amanhã é o partir do momento em que o esperamos». Assim se cumpre a circunferência da vida e com ela o círculo e na totalidade do mesmo a esfera. Eis a geometria sagrada deste livro que é uma oração murmurada à existência.
«É preciso ter coragem para ser feliz». Assim para Dolores, para Helena, para a tia Nelly, para quantos são a alma deste corpo em livro, para quem o lê e nele se irmana, a comunhão dos seres.