quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Tudo nasceu de um sim!


Criei este blog dedicado a Clarice Lispector em Junho de 2007 quando ainda se não havia tornado moda. Depois as redes sociais começaram a ser inundadas de frases piegas tiradas de livros seus, a gerar a ilusão de terem sido lidas, a passar a ideia de que quem citava estava irmanado nas suas dores e na complexa. inteligência. A banalização esgotou-a.

Tinha descoberto também sua irmã, Elisa, e pouco a pouco fui reunindo os livros que publicou e, lidos, percebi que havia neles uma intensidade emocional e a uma valia literária que estava obscurecida pela projecção que Clarice grangeara. E o espaço ficou dedicado a ambas.

Tanto do que foi possível devo-o a Ernane Catroli, médico no Brasil, com quem cimentei uma fraternidade literária que a distância não apaga e que o facto de não nos conhecermos pessoalmente não excepciona.

Clarice faria hoje cem anos. No fluir da vida, isso não conta. A vida renasce quando se pensa na vida. Gostaria de poder ir ao encontro da sua obra, lê-la percorrendo a sua difícil escrita. Olhando para este espaço que lhe dediquei vejo quão irregular é amor que lhe dedico. 

O Instituto Moreira Salles criou hoje um site em sua homenagem. Está aqui. É esta a frase emblemática desse espaço: «Tudo nasceu de um "sim". Uma molécula disse "sim" a outra molécula e nasceu a vida»

sexta-feira, 20 de março de 2020

Memórias de filho

O Mistério do Coelho Pensante, o livro escrito a seu pedido. Residiam em Washington, escrito primitivamente em inglês, a mulher e os peixes.

domingo, 30 de junho de 2019

Um outro e novo ivro

Nunca se tem todos os livros de todos os escritores, nem todos os livros de escritor de quem se julga, por tanto gostar, ter tudo quanto publicou. Humilde ante essa regra de modéstia, é com gratidão tímida que aqui estou, ante o meu amigo Ernane Catroli, ambos irmanados em torno da obra da autora de A Maçã no Escuro, pois que, envelope transatlântico, surrado de uma longa viagem, o rosto cravejado e selos postais, como roseiral em flor, me fez chegar, entre escritos seus, o livrinho Para não Esquecer.
Graficamente modesto, papel pobre, obra póstuma, tirado pela brasileira Edições Ática, em 1979, dois anos após a morte da sua autora, são 108 apontamentos, entre o aforismo e a breve crónica. 
Ao tomá-lo em mãos reencontrei-me, num primeiro pensamento afinal superficial, com a Clarice que ainda hoje, agora episodicamente, ficou pelas redes sociais, a das curtas frases tristonhas, construídas sobre o incongruência lógica que torna em surpresa e aquela forma gramatical que parece ser escrita de quem, estrangeiro, e ela de facto ucraniana de pais emigrados para o Brasil, aprendeu o português como segunda língua, pensando, porém, no acto de escrever, segundo a estrutura da língua materna.
Há, porém, muito mais. E que direi eu da substância da obra, impossível que é, ante tudo quanto ela escreveu, resumir, sintetizar, citar mesmo sem trair o jorro vulcânico, a densidade, o simbólico esotérico dessa Literatura que é Arte e Filosofia? 
Direi que há momentos ali em que fala de alguma dessa sua escrita, como quando, a propósito dos contos Feliz Aniversário, Os Laços de Família, Uma Galinha ou Mistério em São  Cristóvão agora sob o título Explicação Inútil, traz em jeito de confidência: «Não é fácil lembrar-me de como e por que escrevi um conto ou um romance. Depois se despegam de mim, também eu os estranho. Não se trata de "transe", mas a concentração ao escrever parece tirar a consciência do que não tenha sido o escrever propriamente dito.»
Direi, então, que só lendo e, inexistindo edição disponível, a leitura fica pelo frustrado desejo. E é pena, muita pena. Mesmo quando sob o título A posterioridade nos julgará fala apenas da gripe mas com que excelência! «Gripe é uma das tristezas orgânicas mais irrecuperáveis, enquanto dura. Ter gripe é ficar sabendo de muitas coisas que, se não fossem sabidas, nunca precisariam ter sido sabidas. É a expressão da catástrofe inútil, de uma catástrofe sem tragédia. É um lamento covarde que só um outro gripado compreende».
Parecendo na aparência colectânea, trata-se, enfim, de um repositório de novidades. Terem sido estes magníficos momentos publicados originalmente na segunda parte da primeira edição de A Legião Estrangeira, sob o título de Fundo de Gaveta é de somenos. Novo é o que, mesmo redito, é dito como se fora pela primeira vez. É esta uma das essências da escrita lispectoriana: mesmo os seus assíduos e atentos leitores, ao relerem o que deram por lido encontram sempre um outro e por isso novo livro.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Vida Secreta


A revista Vida Secreta (edição on line) divulga a terceira edição dedicada a Clarice Lispector. Pode ler-se aqui. Quem conhece a obra e a biografia pergunta-se se o que há de público na sua vida não é apenas a aparência por vezes superficial de uma secreta vida interior, de um mundo oculto, complexo, de que a intimidade é apenas a natural reserva e que a ânsia e devassa  não deve trespassar, pois ser-lhe-ia incompreensível.

domingo, 10 de agosto de 2014

Há setenta anos, em Lisboa


Devo ao notável blog Malomil a carinhosa lembrança: há setenta anos que Clarice Lispector esteve em Portugal. Tinha lido, até por causa da minha intervenção sobre a sua escrita que há meses tive na Casa de Fernando Pessoa e cujo texto arquivei neste blog, excertos das notas que deixou sobre essa passagem por Lisboa. 
Nunca tinha, porém, sentido, na forma da sua irrequieta caligrafia, a presença sentimental ainda que na superficialidade do que lhe foi dado viver. Não é grandiloquente para nós, até porque é incompleto [ver tudo aqui]
«Uma das melhores coisas interiores é sentir que hoje ainda não é amanhã, que amanhã fatalmente virá, mas que hoje é inteiramente hoje», escreveu. Nisso se resume o essencial.

sábado, 17 de maio de 2014

Clarice Lispector, a mulher de coração selvagem




O texto destinava-se à revista "Tabacaria" da Casa Fernando Pessoa, correspondendo a ter posto em ordem uma palestra que ali proferi sobre "Livros Difíeceis". Vicissitudes fazem com que a revista esteja suspensa. A minha ânsia de dar conta do que estudei essa é imparável. Por isso aqui está, depois de uma longa e impaciente espera.



«(…) que exigissem dele artigos sobre Spinoza, mas que não fosse obrigado a advogar, a olhar e a lidar com aquelas pessoas afrontosamente humanas, desfilando, expondo-se sem vergonha» [121]



A propósito de livros difíceis pediram-me que falasse, aqui na Casa Fernando Pessoa, de Clarice Lispector e escolhesse um livro seu, um livro difícil. E escolhi não o denso A Maçã no Escuro, sua primeira obra, nem o enigmático O Ovo e a Galinha, sim Perto do Coração Selvagem, obra que, depois do seu êxito inicial fulgurante, a atirou para o vazio de tanta dificuldade em encontrar editor, passando pela humilhação de sucessivas recusas e adiamentos quanto ao seu livro seguinte.

Começou a escrevê-lo em 1942, reclusa deliberada numa modesta pensão para encontrar aí, na solidão e austeridade, o ambiente propício à criação, rabiscando-o, já alma doente sem o saber, num caderno de notas, «tacteando no escuro», como diria, terminando-o no tempo de gestação de uma criança «enquanto estudava, trabalhava, noivava».

Estudava Direito, curso que nunca transformaria em profissão, mas a que levou a escrever um dos mais lúcidos textos, mau grado breve, mas breve é também a obra do marquês De Beccaria, que claramente tomou como referência ao escrever a sua tese sobre o poder de punir.

E até aí, nessa jovem universitária se sentia já a irrequietude de alma que a marcaria pela vida e a diferenciava. Porque, ao contrário do que seria natural e escolarmente defensivo nesta matéria, não escreveu sobre o “direito” de punir, fórmula que legitima o Estado no exercício da repressão, mas sim sobre – diria – o mero “poder” de punir. 

A primeira frase desse texto notável é, aliás, logo uma denúncia e um programa de Justiça Criminal: «não há direito de punir. Há apenas o poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a guerra, grande crime, não é punida porque se cima dum homem há os homens acima dos homens nada há».

À data, Clarice trabalhava então no jornal A Noite, como jornalista, profissão que lhe marcaria para sempre a vida, pelo que torna a escrita acto de maleabilidade e geometria variável, e pelo fruto das realidades humanas que proporciona encontrar.

Publicada a primeira obra, em menos de um mês deixa o Rio de Janeiro, acompanhando seu marido, o diplomata Maury Gurgel Valente, colega de curso, não regressando ao Brasil se não vinte anos depois. 

Expatriada, perde o contacto com o húmus que lhe ditou a génese literária. Passou, entretanto, por Lisboa, onde chega a 2 de Agosto de 1944. Encontra-se aqui com Maria Archer, Natércia Freire, João Gaspar Simões. E aborrece-se. «Lisboa deve ser horrível para se viver e trabalhar», escreveria ela numa carta citada pelo seu biógrafo Benjamim Moser [Clarice, 209]. Não é lisonjeiro sabê-lo, mas é a sua verdade sentimental.

É aqui, neste cosmopolitismo forçado em que a reclusão interior é liberdade, lobo na estepe, que nasce a natureza universal do seu modo de escrever. Ao contrário da Literatura brasileira tradicional, que tem marca do solo, do clima e das gentes em cada linha dos seus livros, a escrita de Clarice poderia ter surgido em qualquer parte do globo onde o Homem se encontrasse com a essência da sua existência e ousasse perguntar-se. 


Eis, pois, o livro que escolhi, que mereceria em 1944 o prémio Gonçalo Aranha, por ter sido considerado o melhor romance do ano.

[continua aqui.]

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Clarice e Pablo


«Mas sou uma tímida ousada e é assim que tenho vivido, o que, se me traz dissabores, tem-me trazido também alguma recompensa», escreveu Clarice Lispector a preambular a entrevista que efectuou a Pablo Neruda, a 19 de Abril de 1966. O texto integral, que foi publicado pela Rocco no Livro De Corpo Inteiro, pode ler-se aqui. Chega-me graças à gentileza de Ana Maria Coelho.
Seno verdadeiro fica muito aquém do entrevistado e da entrevistadora. Mas aconteceu, e no Mundo nem tudo é exacto e, menos ainda, perfeito.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O oculto no que se expõe


Fui hoje ver à Fundação Calouste Gulbenkian a exposição sobre Clarice Lispector.
Que pode dizer quem dedica um blog, como é este, à sua escrita e à de sua irmã, Elisa? Que tudo quanto possa contribuir para a divulgação da obra de ambas é meritório. No caso apenas para a obra da primeira.
Há, porém, um senão que se compreende na sua integralidade seguindo as redes sociais. É que de um pensamento profundo, uma escrita densa, um ser complexo, estão disseminar-se pelo espaço da net frases citáveis. Frases lindinhas, tristinhas, poéticas, mas frases. 
Claro que algumas contêm ideias, interessantes, sensíveis e originais. Mas são frases, excertos, rasgões ao tecido onde se encontrava, arrancadas aos locais onde faziam sentido e porque só aí tinham sentido.
No mundo do corta e cola é o que há, toma-se a parte pelo todo. É a superficialidade feita mostra.
E a exposição que eu vi hoje é essencialmente isso, mais um vídeo já muito difundido no youtube, o da sua última entrevista para TV.
Compreendo que uma exposição sobre uma escritora não é um tratado de Literatura. Mas não deve ser tão pouco.
Sublinho o interessantíssimo design de que as imensas paredes em gavetas são símbolo. Quadra, como metáfora, ao seu tipo de escrita. Permite, abrindo uma ou outra, das que se podem abrir, surpreender o enigma de um documento, um excerto de carta, fotografias. A penumbra e a ténue luminosidade faz um certo ambiente.
O essencial falta, porém. Quem compreende, por exemplo, a barata esmagada que, na sua repelência, ganha prevalência como uma das imagens do conjunto, ou o ovo, acantonado e quase impercepítvel, a menção a plantas a animais? Quem surpreende nisso a teologia herética de Spinoza? Quem descortina o oculto e o sagrado, a cosmologia fracturante em que assenta a sua filosofia? Quem entende no ínfimo o infinito?
O que se esconde quando se exibe? O que se perde quando se cita com o limite do fim de citação?

sábado, 12 de janeiro de 2013

A dualidade do um

«O mito é o nada que é tudo», escreveu o nosso Fernando Pessoa. E no caso o mito de que o estrelato de Clarice Lispector, ofuscando a discrição de Elisa, sua irmã, poderia ter lançado um ambiente de relação difícil entre ambas ganhou força de mito. O que li mostrou que não tinha de ser assim, o que é meio caminho para não ter sido assim. No encontro que hoje sucede no Rio de Janeiro o tema estará em debate, pela palavra de Jeferson Masson. Informa-o o jornal O Globo, sei-o pelo amigo Ernane Catroli. Pode ler-se aqui.

domingo, 14 de outubro de 2012

Quando a língua não separa

 
Em francês, numa livraria dedicada à Bretanha, Clarice e Elisa têm voz. É um sentimento de universalidade, diria comovente. O responsável pelo espaço escreveu-me porque soube desta comunhão de afectos que a língua não separa. A ler aqui.

sábado, 11 de agosto de 2012

Os sobreviventes

Chegou, enfim, extraviado o primeiro envio, mas não há amizade que não vença o desalinho postal. Esperava-o, ansioso. Li-o quase na íntegra esta noite. São os Retratos Antigos de Elisa Lispector. Como é possível transmutar a realidade morta de um álbum de fotografias numa quase ficção, como se a flagrância de o desfolhar restituísse alma e vida àqueles idos? Eis, como o assinala a apresentadora da obra, Nádia Gotlib, a natureza deste escrito «teatralização desse espectáculo do "ver" e do "rememorar"».
Por ali se conhece a história de uma família ucraniana exilada no Brasil. História que não conheceríamos pelos escritos de Clarice, omissos em muitas facetas, uma delas a condição judia da família, pouco expressiva quanto à sua condição de emigrantes. História que já se reconstituía por aquele que foi o segundo romance de Elisa intitulado No Exílio.
Que me seja permitido de todas essas vidas convocar a de seu pai, Pinkas [Pedro] Lispector. Vida patética, devotada ao culto do dever, enclausurada pela devoção e pela contenção da dignidade. Dado. Há vidas assim, sacrificiais.
História de perseguição, sujeito aos progrons, de luta pelo amanhã, emigrados para longe de uma Pátria que não lhes sobreviveu, de modéstia e privação, história de religiosidade e empenhamento pela construção do Lar Nacional. História condenada a não ter história. A Lei, em que acreditava, quis que assim fosse. Consciente dos dotes literários da filha, não inferiores - afirmo - aos de Clarice, sumamente menos divulgados, ouviu-se-lhe, após um profundo e como se hesitante silêncio «vou-lhe sugerir um tema. Escreva sobre um homem que se perdeu». A sua biografia, afinal. Morreu aos cinquenta e cinco anos, após o primeiro tempo em que, enfim, gozou umas férias que já nem seriam reparadoras.
Elisa Lispector deixou-nos, sozinha, sem companhia nem descendentes. Sua irmã Tânia guardou o espólio de que saiu este livro. Ele é a história do seu presente contada para o futuro num tempo passado.
Ilustro este escrito com um quadro de Lasar Segall, pintor que diz em tela o que se colhe do que Elisa nos comunicou pelas letras. Tudo com um abraço de gratidão a Ernani Catroli, amigo, que me fez chegar o livro, sabendo do meu desejo por ele.

sábado, 14 de julho de 2012

Retratos Antigos

O livro chegar-mé-à em breve do Brasil. São retratos antigos de Elisa, a esquecida irmã de Clarice. Nadia Gotlib organizou. Teresa Montero, biógrafa da famosa irmã, apresentava nesta edição do jornal brasileiro O Globo. Tudo aqui.

terça-feira, 27 de março de 2012

O paradoxal

Recomeçar a ler nunca tendo deixado de ler é como sentir a respiração quando afinal se respira sempre quando nem se dá por isso. Foi ontem à noite, com o livro de contos Sangue no Sol, de Elisa Lispector. De novo devolvido à sua escrita estranha, ao seu inesperado modo de dizer, «o inconstante e o inconsistente sempre de mãos dadas com o paradoxal».
Descobri Elisa depois de Clarice. Esta escondeu-a, notória. Seus livros estão praticamente esgotados. «E assim os dias iam-se emendando nas noites, e estas naqueles», como sucedeu quando chegou a madrugada. Li pouco, lendo muito.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Figuras da Escrita

Eu ignorante me confesso. Devo ao Duarte Fonseca esta menção: «Como chegar àquilo a que as palavras mal podem dar expressão? O enigma que (des)norteia a obra de Clarice Lispector (1920-1977) foi levantado pelo professor e crítico português Carlos Mendes de Sousa ao mergulhar nas profundezas da escritora. Sousa é autor de "Clarice Lispector - Figuras da Escrita", que saiu em 2000, com uma tiragem de 500 exemplares, pela editora da Universidade do Minho, em Portugal, tornou-se objeto de culto entre claricianos e só agora chega ao Brasil, editado pelo IMS (Instituto Moreira Salles)». A notícia está aqui. Fui tentar ver o conteúdo, aqui e sobre a o autor aqui. E calo-me, de contrição, por ignorar tanto o que é nosso.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Manuscrito inédito de Clarice Lispector

Graças à gentileza de Graça Ribeiro, prezada amiga literária de além-mar chegam-se este texto de Pedro Corrêa do Lago, que transcrevo na íntegra:

«Fora os papéis guardados no arquivo de sua família, os manuscritos de Clarice Lispector são muito raros em coleções privadas. Com a fama cada vez maior da escritora e o número crescente de admiradores no exterior existe inclusive uma grande procura por seus documentos de parte de universidades, e Instituições, e colecionadores estrangeiros.
A página manuscrita aqui reproduzida contém uma frase belíssima que não chegou à versão publicada de A Hora da Estrela e que menciona Macabéa, talvez uma de suas personagens mais famosas. São apenas três frases: “Macabéa não sabia como se defender da vida numa grande cidade. Ela que tinha um sonho impossível: o de um dia possuir uma árvore. Que árvore, que nada: não havia nem grama sob os seus pés”.
No final de sua vida Clarice andava anotando coisas em pedacinhos de papel, cheques, guardanapos e até mesmo maços de cigarros. Uma de suas secretárias vivia guardando os pedaços no envelope, e nesta página manuscrita aparece uma menção em outra letra para identificar o fragmento – provavelmente na caligrafia de sua enfermeira/assistente Siléa Marchi: “(Macabéa quando vem para o Rio)”. Clarice sofrera muito com as sequelas do incêndio que quase lhe custara a mão com que escrevia. Nos últimos anos estava bastante fraca, e o ferimento na mão também explica a letra pouco legível.
Sua editora principal era sua grande amiga Olga Borelli, que ajudou Clarice a organizar suas últimas grandes obras-primas como Água Viva, A Hora da Estrela, assim como o póstumo Sopro de Vida. A recente biografia de Clarice por Benjamin Moser cita Olga Borelli comentando o método editorial da grande escritora:
 
“Respirar junto, é respirar junto ... Porque existe uma lógica na vida, nos acontecimentos, como existe num livro. Eles se sucedem, é tão fatal que seja assim. Porque se eu pegasse um fragmento e quisesse colocar mais adiante, eu não encontraria onde colocar. É como um quebra-cabeça. Eu pegava os fragmentos todos e ia juntando, guardava tudo num envelope. Era um pedaço de cheque, era um papel, um guardanapo […] Eu tenho algumas coisas em casa ainda, dela, e até com cheiro de batom dela. Ela limpava o lábio e depois punha na bolsa […] de repente, ela escrevia uma anotação. Depois de coletar todos estes fragmentos, comecei a perceber, comecei a numerar. Então, não é difícil estruturar Clarice, ou é infinitamente difícil, a não ser que você comungue com ela e já tenha o hábito da leitura.”

Esse manuscrito inédito de grande interesse para a obra de Clarice me foi comunicado por seu atual detentor».


* Pedro Corrêa do Lago, nascido no Rio de Janeiro em 1958, é mestre em economia pela PUC - Rio. Interessa-se por manuscritos desde os 13 anos e formou a maior coleção brasileira particular de documentos históricos e literários.

domingo, 1 de janeiro de 2012

A tocante fraqueza

É mais um dos seus pequenos livros. Grande livro. São contos. Interessa-me menos o que conta mas o modo de contar. Como é tradicional nos livros de contos, o título é o nome de um dos contos que arquiva. Não o li a esse conto. Não sei em nome de que superstição faço quase sempre assim, guardando para o fim, como quem quer terminar a refeição com a mais saborosa lembrança. Li ao calhar, sublinhei os momentos magníficos como quando «entortando as bocas, na aflição da asfixia, os peixinhos minúsculos lutavam desesperadamente pelas suas minúsculas vidas», a história da despedida, «o penoso esforço de desatar os laços dos humanos comprometimentos tantas vezes alicerçados sobre intenções mal compreendidas», o difícil adeus àquele «que, não fosse por imposição, e do mesmo modo se lhe teria devotado, tão tocante é a fraqueza dos que em nós se apoiam, e a piedade que nos inspiram, como desnorteante é o remorso de quando nos furtamos e, em consequência, ferimos e deserdamos».
Elisa Lispector escreveu A Despedida. O livro Inventário, publicado em 1977, pela Rocco, no Rio de Janeiro, guardou-o para quem, sentindo-o, se reveja no já vivido, «num magoado adeus para nunca mais».

domingo, 18 de dezembro de 2011

Retratos Antigos

Será lançado em Janeiro de 2012. Chamar-se-á Retratos Antigos. Coordenado por Nádia Gotlib. «De acordo com Nádia, a obra tem como características marcantes o modo como a história da família – de trabalhadores rurais e comerciantes – é contada por Elisa, que volta a seu tempo de infância para reconstruir o passado com o filtro da maturidade. «O texto é movido por intensa e respeitosa comoção da narradora diante dos sofrimentos que levaram o pai, Pedro, a deixar a Ucrânia em direção ao Brasil», salienta Nádia Gotlib, que foi professora de literatura brasileira na USP.
Ao contrário de Clarice, a escrita de Elisa é claramente autobiográfica, mas uma biografia não da primeira pessoa mas da família. Sintoma de solidão, ela que nunca casou nem filhos teve e viveu uma vida discreta, funcionária do Ministério do Trabalho. A qualidade da sua escrita surpreendeu muitos. Hoje é a hora do resgaste. [mais, aqui]

Clarice na cabeceira

Cito da notícia que encontra no jornal A Folha, de São Paulo e que pode ser lida aqui:

Reunião de vinte textos escolhidos por convidados afeitos à obra de Clarice Lispector, este livro apresenta uma leitura selecionada de narrativas curtas publicadas entre 1962 e 1973, na revista "Senhor" e no "Jornal do Brasil", e posteriormente agrupadas nos livros "A Descoberta do Mundo" e "Para Não Esquecer".
Abordando temas tão diversos quanto as memórias da infância, a vida, a morte, o amor, o ato de escrever, o silêncio, a maternidade e a indignação, as crônicas ganham sabor especial quando apresentadas por amigos e admiradores de Clarice, que compartilham o impacto da escritora e de sua obra em suas vidas, como Eduardo Portella, Ferreira Gullar, Marília Pêra, Maria Bonomi e Naum Alves de Souza, entre outros.
Com organização de Teresa Montero, a obra é a oportunidade de conhecer "perfeitos momentos da literatura brasileira moderna, perfeitos momentos da vida nas palavras, perfeitos momentos", como descreve Caetano Veloso ao falar sobre o sentimento que a leitura de Clarice provoca».

Ilustríssima Elisa

A Ilustríssima do jornal A Folha, de São Paulo publicou um artigo, assinado por Raquel Cozer dedicado a Elisa Lispector. Pode ser encontrado aqui. Foi desse artigo que retirei a foto que orna este blog: [da esquerda para a direita] Tania, Elisa e Clarice.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Além da Fronteira, o exílio

Acabei ontem a leitura de um pequeno grande livro chamado "Além da Fronteira". É o livro de estreia de Elisa [de origem Leia] Lispector, cuja extraordinária qualidade literária ficou ofuscada pela glória de sua irmã Clarice. Livros são hoje difíceis de encontrar, salvo no "sebo", o que corresponde aos nossos alfarrabistas. Mas que a amizade do Ernane Catroli reuniu para que eu pudesse ler. Livros de que pouquíssimos falam, pelo paradoxo profundo mas sem fama de quem os escreveu.
"Além da Fronteira", editado em 1945 por José Olympio, já pelo título se pressente é um livro construído sobre a memória da sua condição de emigrante ucraniana, vinda do lugar das privações, miúda ainda, a família em demanda da subsistência. 
Mas pressente-se nele já a opressão do exílio nesse Brasil, terra de futuro [para retomar o que foi o título de um controverso livro de Stefan Zweig, que tantos dissabores lhe causou e que no Brasil encontrou, afinal, a terra do seu suicídio] e «exílio» é a palavra que surge, quase a findar a obra, quando Sérgio, personagem central da narrativa, inicia a sua viagem final e sente na boca «a amarga sensação de exílio». E "Exílio" é título do seu livro seguinte, já de cunho mais intensamente auto-biográfico. E é nomenclatura no contexto da escrita de de Albert Camus, e título também do seu magnífico "O Exílio e o Reino", cuja escrita me ocorreu tanta vez ao ler a escrita desta discreta porque esquecida autora.
O livro é um excerto da vida de Sérgio, cruzado com excertos da vida de todos os outros, incidentais, precários, como é a vida, vista em permanente «extravasamento da perplexidade», escrita nómada por quem se pressente revista constantemente na pergunta «por que você não volta para a sua terra, se não consegue deitar raízes por aqui?».
Traçado em breves capítulos, há no desenrolar da narrativa um crescendo que, imperceptível, se apossa do leitor e torna a leitura difícil, pois em cada página, por vezes em cada parágrafo, se adensam os sentimentos como um corpo que se encharcasse por uma chuvada fria e dolorosa. Por isso levei semanas a ler, interpoladamente, estas 102 páginas, impressas em oitavo.
A grandiosidade surge no quase final, Sérgio a apartar-se do navio, a que já não voltará mais, o navio da viagem esperançosa e a ficar-se, só ante os homens mas presente, enfim, ante o ventre matricial da Terra, recebido e a entregar-se. São duas páginas em que o enraizamento se vai dando pelo entorpecimento primeiro do conhecimento, a perda sucessiva da sensação, a assimilação, enfim, do corpo e da mente «a essa espécie de paz interior e profunda», até que, deitado, os olhos visando os céus, os braços em cruz, «o seu dorso era o dorso da terra, e o espírito bom da terra o havia penetrado até ao fim», um fim que é o surgir de uma «vida com um sentido próprio, sem noção de tempo, local ou circunstâncias», porque «integrando-se numa ordem que o conciliava com a vida, com os homens, com Deus».
Como dizer-se que é a sua morte quando é o momento apenas da sua vida eterna, o ciclo do que existe a renovar-se, como a de Paulo no sanatório, e a sua noite, noite simbólica de inferno e desolação, «a noite, ora transformada numa nau fantasmagórica, parece oscilar no tempo (...)» em que «o navio do tempo parece avançar e retroceder entre o presente e o passado, até confundir tudo numa alucinação de pesadelo».
Sempre o navio e sua viagem, como o navio dos mortos, rumo de emigrados, «gente amontoada sobre gente, e o odor de carne, de suor, de humanidade».
«O amanhã é o partir do momento em que o esperamos». Assim se cumpre a circunferência da vida e com ela o círculo e na totalidade do mesmo a esfera. Eis a geometria sagrada deste livro que é uma oração murmurada à existência.
«É preciso ter coragem para ser feliz». Assim para Dolores, para Helena, para a tia Nelly, para quantos são a alma deste corpo em livro, para quem o lê e nele se irmana, a comunhão dos seres.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O Muro de Pedras

Tinha guardado, tão gulosamente como miúdo que olha contristado para o fundo do prato do seu doce predilecto e estica o tempo em que terminará o prazer de ter estado contente, as últimas folhas do livro "O Muro de Pedras" de Elisa Lispector, irmã de Clarice.
E já escrevi aqui do espanto, do sublime que foi a leitura, de um livro que é uma busca de amor que contém, afinal, a busca de Deus. 
Usando o pseudónimo de "Congonhas", de sabor caricato para a nossa pituitária fonética, foi a primeira vencedora do prémio Lins do Rego.
Talvez, nesta noite pungente, me faça companhia a frase «fazendo-se sofrer, ela se dava razão contra quem lhe infligia sofrimento» e se isto fosse um poema de amor e não uma nota breve de uma leitura extensa eu te diria que a nenhum mundo consentiria existência se dele houvesse sol ou lua que não fosse a escaldante alegria e a nocturna brisa do riso.
Retirei-a do livro, a frase, e a memória já vaga do que fui lendo, ficou, como a descrição de um lugar em que não sabemos dizer como era mas dizemos tudo dizendo «e é tão bom».
Agora sim, pronto para todos os seus livros, que venham do sebo, assim os consiga, guardarei este na estante, amavelmente com a promessa «não me nunca esquecerei de ti» porque não se esquece de quem nos faz feliz.

domingo, 7 de agosto de 2011

O ser incontido

Tenho-a ainda não totalmente lida a biografia que dela escreveu Benjamim Moser, e a foto-biografia e tantos dos seus livros quase todos e soube agora que havia as cartas para as irmãs e de uma das irmãs comecei a ler em êxtase os livros de Elisa, e nesta manhã surgiu esta homenagem que é ela presente aqui em pessoa e, afinal, mas onde está tudo quanto lhe sobeja e a define, esse mundo sem limites no infinito na indefinição, incontida e total?

A potência da perversidade

Só quem, não tendo com que chegar a eles, nunca viveu a ânsia e o desejo de os ter, não entende. Só quem não viveu a vida como se ela fosse a menina chupando "balas" doces precisando de que soframos pelos livros que há, «as olheiras se cavando sobre os olhos espantados», o mundo por ler.
A narrativa é de uma beleza que dói: «Eu própria me transformei na esperança da alegria». Em livro.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Für Elisa

Extasiei-me e ainda hoje perdura essa torrente de sentimentos ao ler Clarice Lispector, antes de ela ter sido "descoberta" até à náusea por quantos se limitam a dela coleccionar frases quando o que há na sua escrita são extensas e densas narrativas de uma insólita alma errante por um estranho mundo em que, afinal, nos reconhecemos singularmente. Porque é fácil gostar de uma frase sua, já que é difícil ler todo um livro, Clarice é servida como um "shot" numa noite de estúrdia: efeito imediato e alucinante. No resto ninguém a quer; o que nos legou de profundo e de longínquo poucos a acompanham. Segue, morta, mulher solitária no mundo dos sem companhia.
Sucede que eu não conhecia sua irmã, Elisa Lispector. Tive nas mãos um primeiro livro que me limitei a folhear, sabendo que é a história, escrita em 1948, da migração dos Lispector da Ucrânia para a o Brasil, romance auto-biográfico intitulado "No Exílio". Mas foi agora, na cave do alfarrabista Chaminé da Mota que a encontrei de novo, agora no seu livro "O Muro de Pedras", que mereceu o prestigiado prémio José Lins do Rego. Ali estava, amarelecido e escondido na edição da Livraria José Olympio Editora, de 1963.
Se a escrita de Clarice vincava a alma esta não produz menor efeito. Depois de ler é preciso ir «endireitando os sentimentos» como ela diz da sua personagem, «um infinito desejo de trégua e de cessação».
É uma escrita que aleija, como «num pensamento difícil que aos poucos se ia esgaçarçando a esmo, até que a quietude e o cansaço a venciam».

domingo, 10 de abril de 2011

A epifania e o seu eco

Não importa quanto tempo levamos a ler um livro nem se interrompemos a leitura, como quem passeia e se senta em cima de uma pedra ou decide adormecer num momento da viagem. Não importa se não lemos todos os livros que há para ler, nem se somos ignorantes em relação aos "incontornáveis" como dizem alguns ditadores do gosto e tiranos da erudição obrigatória.
Nunca me dei mal com a ignorância própria, apenas com a estupidez alheia.
Retomei ontem a leitura da biografia de Clarice Lispector, escrita por Benjamim Moser, a menina ucraniana judia pobre que neste momento está em Nápoles é mulher de diplomata e vai no seu segundo livro.
Ao sucesso do primeiro livro sucedeu o azar do segundo. A escrita confundiu-se, o nome de cada palavra passou a ser a palavra em si e o seu símbolo, a vida a busca para a palavra ignota, em oração permanente para que a epifania ecoe no indizível.
A foto foi tirada quando de uma visita ao Vesúvio. Sem que ela o saiba está nela o símbolo de um casamento que se arruinaria. Olhando com desconsolada tristeza para o que ficou é a melhor expressão do mundo que nunca poderia ter sido. Daí que a sua escrita seja a de um amor desesperado.

domingo, 11 de julho de 2010

Perto do Coração Selvagem

Reduzi-lo-ia severamente se o apodasse de uma história sobre o casamento. É talvez uma história sobre a impossibilidade do casamento. De qualquer casamento. Sobre a solidão no acasalamento porque enamorada «agora ela era tristemente uma mulher feliz».
No momento em que o escrevia Clarice Lispector terminava a sua formatura em Direito. Aproximava-se o casamento que faria dela por uns anos a senhora de Gurgel Valente um diplomata de modesto nível, «pequenino pequenino» ante tal gigante humano a que no entanto se aprisionara.
É o relato de uma angústia pressentida, como se a de um medo pavoroso ante um outro casamento depois de esgotados todos os casamentos, dor exposta indecentemente na frase «Mas você não acha que tudo está quase terminado entre nós? - E quase desde o princípio, aventurou» Otávio a Joana. Porque neste pequeno trecho está, sem pudor e no entanto escondida numa selva de sons e cores, a sua biografia matrimonial.
Perto do Coração Selvagem é um extraordinário livro, que anuncia uma extraordinária escritora. Há nele uma densidade de sentimentos, uma torrente de sensações, um modo oblíquo de ver que tornam a estranha forma de dizer o que de incomum uma tal escrita nos traz.
A dez páginas do fim hesito sobre o que dizer para trazer ao mundo das palavras uma pálida imagem que seja de quanto ali há, como se nada pudesse ser criado mas apenas revelado e o milagre da revelação se me tivesse tornado  impossível.
No decurso da leitura, por ser má a qualidade da edição, abriram-se as folhas como um naipe de cartas que espalhasse da obra o seu teor aleatoriamente, fazendo do acaso a sorte da narrativa. Surgiu aí o símbolo como modo de dizer.
Benjamim Moser, cuja biografia de Clarice acompanho ao mesmo tempo que estou a ler a sua obra - porque a vida da escritora é afinal o que escreveu - acentua quanto há de Spinoza neste livro, colocado o pensamento deste judeu português como tema do estudo que Otávio redige inacabadamente ao mesmo tempo que planeia um outro vil de tão prático sobre um tema de Direito Civil. Sim, é uma leitura interessante, porque «Deus pousa numa árvore pipilando», e porque num lamento se percebe «que exigissem dele artigos sobre Spinoza, mas que não fosse obrigado a advogar, a olhar e a lidar com aquelas pessoas afrontosamente humanas, desfilando, expondo-se sem vergonha» e o leitor tem pena sem que ele a mereça. No momento em que suspendi a leitura, surpreendo Otávio espojado-se velhaco na ideia que bom «seria bom livrar-se dela, fazer o plano do livro de direito civil. Já se via caminhando entre suas coisas com intimidade».
Cheia de flores que se transformam em rosas, a força selvagem do ar, submergindo na profundezas da entrega, Joana partirá, Deus apiedado, dissolvendo-a na Natureza que é, afinal, um seu modo divino de ser.
Um livro destes é um excerto de vida que se arranca ao coração. A um indómito coração selvagem.

domingo, 20 de junho de 2010

Perto do Coração Selvagem

Comecei a lê-lo. Primeiro livro de Clarice. Publicado em 1943. Escrito nos tempos da Faculdade de Direito, antes do casamento com Gurgel Valente, se essas datas interessam na vida e obra de uma escritora. Redigiu-o entre Março e Novembro de 1942, concluindo-o num mês, ao isolar-se na Pensão Marquês de Abrantes, no Rio de Janeiro, cidade onde vivia então, trabalhando como jornalista.
É um livro poderoso, invulgar, fortíssimo, em que as sensações se transmutam em sentimentos, carregando os nervos em cada folha. Mas está a ser um livro de inteligência rara, de inesperados modos de ver, densos pensamentos, invulgares, tocantes. Um livro que anuncia, com o fulgor de um raio, uma tempestade solar no modo de viver a vida e na própria vida.
Na biografia que escreveu, Benjamim Moser sugere que o livro seja lido pensando que a autora, judia, leu Espinosa e o aprofundou.
Estou a ler. Cedo à tentação de escrever, retesados que tenho os nervos, incapaz o cérebro, o coração enfartado de comoção. Mais tarde, quando o entardecer frio trouxer razão e noite e com isso paz. Voltarei.

domingo, 30 de maio de 2010

Até já, pois


Ainda consegui começá-la, já a madrugada começava, a biografia que Benjamim Moser escreveu sobre Clarice Lispector. Tinha-o trazido do Rio de Janeiro, volume belíssimo, cuidado. O livro surgiu embrulhado em polémica. Impossível não ser assim, controversa a biografada. Acordei poucas horas depois, para continuar a ler. Até já, pois.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Curiosa forma

Veja-se esta curiosa forma de dizer: «Clarice Lispector faleceu aos 57 anos em 1977. Ao contrário do que acontece com muitos escritores no Brasil, seus livros nunca foram enterrados junto com ela e seguem por aí, fascinando leitores brasileiros e estrangeiros». É um artigo que encontrei aqui, no Jornal do Comércio de Porto Alegre, escrito por Jaime Cimenti.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Espinafrada


Lembro-me que quando comecei a ler a Clarice Lispector poucas pessoas a conheciam. Assisti à enchente. Há assim fenómenos que acabam por banalizar os escritores. Foi assim com o Pessoa, é agora assim com o Lobo Antunes, será assim com tantos outros.
Gente que nunca se interessou por certas realidades da Literatura passa, numa lógica mimética, a adoptá-los como brasão demonstrativo da sua linhagem literária. Trazem-nos para os seus espaço fingindo familiaridade. O copy paste ajuda muito nesta imposturice.
Senti-me pois reflectido num artigo que vem publicado na revista Época, assinado por Luís Antônio Giron, intitulado «Clarice virou pastel». Cito um excerto, só para se ter uma ideia: «Se alguém pensa que pode mergulhar naquele húmus de sangue, alma e digressões e sair de lá como entrou, como se lesse um romance espírita psicografado, então perdeu a viagem. A maioria dos leitores é assim, em especial esses leitores de salão, hoje com o cérebro capaz de apreender 140 caracteres, contando os espaços».
E se não bastar, mais este e ficamos por aqui: «É por essas e tantas outras que vale a pena continuar vivendo por longo tempo. Sempre uma novidade aparece, em especial aos mortos que não se defendem dos sucessivos revisionismos por que passam. A curiosidade matou o gato, mas me anima a viver. Eu gostaria de estar lúcido daqui a 30 anos só ver Clarice ser convertida numa espécie de Nossa Senhora do Brasil de uma nova religião. Ou ser espinafrada».